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Jamil Chade – O Estado de S. Paulo

direitos_humanos11GENEBRA  – 60 anos após a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 4 bilhões de pessoas no mundo ainda não tem acesso à Justiça. Nesta quarta-feira, 10, governos, ativistas e a ONU comemoram seis décadas de um acordo que, se tivesse de ser negociado hoje, dificilmente conseguiria chegar ao mesmo nível de consenso. O maior desafio ainda é o de traduzir os princípios em garantias para milhões de pessoas, situação ainda mais urgente diante da crise econômica que pode afetar de forma mais dura os pobres.

“A diferença entre o que diz a Declaração Universal e o que é aplicado na prática é gritante”, afirmou Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e chefe de um grupo de personalidades eminentes que tentarão relançar um processo para aplicar a declaração.

Após a Segunda Guerra Mundial, a declaração foi assinada no dia 10 de dezembro de 1948 com o objetivo de estabelecer as bases dos direitos de qualquer pessoa e garantir que esses direitos são inalienáveis. Em 60 anos, se transformou no documento mais traduzido do mundo. Entre as personalidades que formaram a comissão para escrever os 30 artigos está Eleonor Roosevelt. Hoje, o maior desafio é o de aplicar o que países descreveram como um direito já em 1948. Quase 1 bilhão de pessoas passam fome. 2 bilhões de pessoas ganham menos de US$ 2 por dia. O direito à saúde e educação não estão garantidos e tortura e violações aos direitos políticos e cívicos estão ameaçados.

“Quase 4 bilhões de pessoas no mundo, dois terços do planeta, não tem acesso à Justiça”, alertou Robinson, baseada em um estudo feito por seu grupo de especialistas. A falta de acesso não ocorre apenas por falta de recursos para pagar um advogado, mas pela corrupção, lentidão e até restrições políticas que indivíduos tem de serem julgados de forma transparente e justa. “A única forma de mudar isso é uma reforma completa do sistema judiciário em muitos países”, alertou Robinson. No caso do Brasil, dois relatórios da ONU apontaram neste ano que nem todos os brasileiro tem acesso garantia à Justiça e pedem uma “ampla reforma do sistema judicial brasileiro”.

A realidade internacional, portanto, é ainda bem diferente do que a declaração aponta. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, afirma o primeiro artigo. Em termos diplomáticos, o próximo grande desafio será a conferência mundial em 2009 sobre o combate ao racismo e xenofobia. Os países ocidentais acusam os governos islâmicos de estarem tentando seqüestrar o encontro e transformá-lo em um evento de repúdio a Israel e ao governo americano, sob o protesto de lutar contra a “islamofobia”. Europa e Estados Unidos também alertam que os países islâmicos também estariam querendo rever o direto à liberdade de expressão.

1181578698_f1Washington já anunciou que não irá ao evento, mas as esperanças são de que o novo governo de Barack Obama reveja a posição de Washington. Já os africanos querem um pedido formal de desculpas por parte do Ocidente pelo período da escravidão. “Há a impressão de que não conseguiríamos ter um texto tão claro como o que foi assinado em 1948 se tivéssemos que reescrever o documento”, alerto Robinson. Para os mais críticos à declaração, os princípios estipulados nela foram elaborados por países Ocidentais ao resto do mundo sobre o que seriam os direitos humanos. Robinson rejeita a idéia. “Todos aceitam os princípios da declaração”, alegou. Em 1948, nem todos os países votaram à favor da declaração. Oito se abstiveram – todos do bloco soviético – e a Arábia Saudita votou contra.

O bloco islâmico também vem aumentando as críticas contra o documento na última década e principalmente depois da reação do Ocidente após os atentados de 11 de setembro de 2001. Como resposta, os países árabes criaram uma Declaração dos Direitos Humanos Islâmicos. No texto, os governos insistem que cada pessoa é “livre e tem direito à vida digna de acordo com a leis islâmicas da Sharia”. Nem todos os ativistas islâmicos concordam com isso. Shirin Ebadi, advogada iraniana e prêmio Nobel da Paz, é uma delas. “Existem princípios universais”, disse.

Novos Desafios

Além de ter de lidar com questionamentos, a declaração também enfrenta novos desafios. Um deles tem sido a erosão de princípios diante da guerra contra o terrorismo. Nos últimos anos, a administração de George W. Bush chegou a rever sua definição do que seria tortura no questionamento de suspeitos de cometer terroristas. A crise econômica também ameaça expor as violações aos direitos sociais em todo o mundo, diante dos eventuais cortes drásticos nos orçamentos de governos para programas sociais.

Brasil

No caso do Brasil, a tradução dos direitos à vida real também é o maior desafio. Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro dos Direitos Humanos durante o governo Fernando Henrique Cardoso, aponta para certos avanços na implementação dos direitos. Mas alerta que o silêncio sobre as violações precisa acabar e políticos precisam admitir os problemas.

 “Hoje, a democracia no País ainda convive com o autoritarismo”, afirmou. “As políticas de São Paulo e do Rio continuam sendo as mais violentas do mundo democrático”, alertou. “Há um jogo de faz de conta de que a tortura não existe mais no Brasil. Mas políticos precisam romper esse silêncio e tratar do assunto em suas campanhas eleitorais”, defendeu Pinheiro.declaracao-universal-direitos-humanos-61

Uma das formas de lidar com esses problemas, segundo ele, seria dar uma resposta às violações cometidas durante a ditadura militar. “Para lidar com os problemas do presente, precisamos limpar o passado”, concluiu, defendendo o fim da lei da Anistia. Os problemas econômicos ainda são destacados pela ONU para alertar para as violações no Brasil. Um exemplo da desigualdade social está na educação. Para a entidade, os avanços nas matrículas nos últimos anos “mascaram uma desigualdade extrema ” e regiões com escolas com qualidade abaixo dos níveis adequados. “No Norte e Nordeste, apenas 40% das crianças terminam o primário”, afirma a ONU em um documento de avaliação da situação no Brasil. No Sudeste, essa taxa seria de 70%. 3,5 milhões de adolescentes ainda estariam fora das escolas. Os motivos: violência e gravidez precoce.

Outro exemplo de desigualdade está na saúde. Os indígenas tem um índice de mortalidade que é o dobro de uma criança no Sudeste. 87% da população tem acesso a água encanada. Mas os 20% mais ricos da população tem um acesso 50 vezes maior que a parcela dos 20% mais pobres.