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:: Por S.N. Goenka ::

Quando há escuridão, a luz é necessária. Hoje, com tanta agonia provocada por conflito violento, guerra e derramamento de sangue, o mundo precisa urgentemente de paz e harmonia. Este é um grande desafio para os líderes religiosos e espirituais. Aceitemos este desafio.

Toda religião possui uma forma ou uma aparência exterior e uma essência ou núcleo interior. A aparência exterior consiste de ritos, rituais, cerimônias, crenças, mitos e doutrinas. Isto varia de uma religião para a outra. Mas existe um núcleo interior comum a todas religiões: os ensinamentos universais de moralidade e de caridade, de uma mente disciplinada e pura cheia de amor, compaixão, boa vontade e tolerância. É este denominador comum que os líderes religiosos devem enfatizar, e que os seguidores religiosos devem praticar. Se for dada a importância adequada à essência de todas as religiões e for mostrada maior tolerância pelo seu aspecto superficial, o conflito poderá ser minimizado.

Todas as pessoas devem ser livres para professar e seguir a sua fé. Ao fazerem isso, contudo, elas devem ter cuidado para não negligenciarem a prática da essência de sua religião, para não perturbarem os outros pela prática de suas próprias religiões e para não condenar nem menosprezar outras fés.

Em razão da diversidade das fés, como superamos as diferenças e atingimos um plano concreto para a paz? O Buda, o Iluminado, era freqüentemente procurado por pessoas de diferentes pontos de vista. Para eles, dizia “Deixemos as nossas diferenças de lado. Demos atenção àquilo onde possamos concordar e coloquemos isso em prática. Por que discutir?” Este sábio conselho ainda é válido hoje em dia.

Eu venho de uma terra antiga que deu origem a muitas e distintas escolas filosóficas e espirituais ao longo dos milênios. Apesar de casos isolados de violência, o meu país tem sido um modelo de co-existência pacífica. Há 2.300 anos era dirigido por Ashoka, o Grande, cujo império se estendia do atual Afeganistão a Bangladesh. Em todo o seu reino, este dirigente cheio de compaixão fez inscrever editos em pedra, proclamando que todas as fés deveriam ser respeitadas e, conseqüentemente, seguidores de todas as tradições espirituais se sentiam seguros sob sua jurisdição. Ele pedia às pessoas para levarem uma vida moral, respeitarem os pais e idosos, e se absterem de matar. As palavras que utilizava para incentivar os seus súditos ainda são relevantes hoje em dia:

Um indivíduo não deveria somente honrar a sua própria religião e condenar outras religiões. Em vez disso, dever-se-ia honrar outras religiões por diversas razões. Ao fazer isso, ajuda-se a sua própria religião a crescer e se presta serviço à religião dos outros. Ao agir diferentemente, cava-se uma cova para sua própria religião e se prejudicam outras religiões igualmente. Alguém que honra a sua própria religião e condena outras religiões pode fazer isso por devoção à sua própria religião, pensando, “Eu glorificarei a minha religião”; mas esta ação prejudica a sua própria religião mais seriamente. A concórdia é boa. Que todos escutem e se disponham a ouvir as doutrinas professadas por outros. (Edito em pedra 12)

O Imperador Ashoka representa uma tradição gloriosa de co-existência tolerante e de síntese pacífica. Aquela tradição sobrevive entre governos e dirigentes hoje em dia. Um exemplo é o do Nobre Monarca de Omã, que doou terra para a construção de igrejas e de templos de outras crenças, enquanto pratica a sua própria religião com toda a devoção e empenho. Eu tenho certeza de que tais líderes e governos compassivos continuarão a aparecer no futuro em muitos lugares em toda a parte do mundo. Como se diz, “Abençoados são os promotores da paz, pois ele serão chamados de filhos de Deus.”

Está mais do que claro que os adeptos da violência primeiramente ferem seus próprios amigos, vizinhos e familiares. Eles podem fazer isso diretamente, por intermédio de sua intolerância ou indiretamente ao provocar uma resposta violenta às suas ações. Por outro lado, diz-se “Abençoados são aqueles cheios de misericórdia pois eles irão obter a misericórdia.” Esta é a lei da natureza. Ela pode ser igualmente chamada de decreto ou caminho de Deus. O Buda disse, “A animosidade pode ser erradicada não pela animosidade, mas somente pelo seu oposto. Este é um eterno Dhamma (lei espiritual).” O que é chamado de Dhamma na Índia nada tem a ver com hinduismo, budismo, jainismo, cristianismo, islamismo, judaísmo, sikhismo ou qualquer outro “ismo”. Esta é a verdade simples: antes de prejudicar outros, você primeiro se prejudica a si mesmo ao gerar negatividade mental; e ao remover a negatividade, você pode encontrar a paz interior e fortalecer a paz no mundo.

Paz na Mente para a Paz no Mundo

Cada religião digna desse nome convoca seus seguidores para levarem um estilo de vida moral e ético, para atingirem o domínio da mente e para cultivarem a pureza do coração. Uma tradição nos diz, “Ame o seu Vizinho”, outra diz, Salaam Malekum – “Que a paz esteja convosco”; ainda outra diz, Bhavatu sabba mangalam ou Sarve bhavantu sukhinah – “Que todos os seres possam ser felizes”. Seja a Bíblia, o Alcorão ou o Gita, as escrituras chamam pela paz e pela amizade. De Mahavira a Jesus, todos os grandes fundadores de religiões foram ideais de tolerância e de paz. No entanto, o nosso mundo é freqüentemente movido a disputas sectárias e religiosas ou até mesmo pela guerra – porque nós damos importância somente para a aparência exterior da religião e negligenciamos a sua essência. O resultado é uma carência de amor e compaixão na mente.

A paz no mundo não pode ser atingida a não ser que haja paz dentro dos próprios indivíduos. Agitação e paz não podem co-existir. Um caminho para se atingir a paz interior é Vipassana ou a Meditação da Introspecção – uma técnica de auto-observação e de experimentação da verdade, não-sectária, científica voltada para resultados. A prática dessa técnica traz a compreensão experimental de como a mente e o corpo interagem. Sempre que a mente gera amor desinteressado, compaixão e boa vontade, o corpo inteiro é invadido por sensações agradáveis. A prática de Vipassana também revela que a ação mental precede cada ação física ou vocal, determinando se aquela ação será saudável ou insalubre. A mente é o que mais importa. É por isso que nós devemos encontrar métodos práticos para tornar a mente pacífica e pura. Tais métodos amplificarão a eficácia da declaração conjunta que emergirá dessa Reunião de Cúpula para a Paz no Mundo.

A Índia Antiga deu duas práticas ao Mundo. Uma é o exercício físico das posturas do ioga (Asanas) e o controle da respiração (Pranayama) a fim de manter o corpo saudável. A outra é o exercício mental de Vipassana a fim de manter a mente saudável. Pessoas de quaisquer credos podem e de fato praticam ambos os métodos. Ao mesmo tempo, elas podem seguir suas próprias religiões em paz e harmonia; não há necessidade de se converter, uma fonte comum de tensão e de conflito.

Para a sociedade ter paz, mais e mais membros da sociedade devem ser pacíficos. Como líderes, nós temos a responsabilidade de dar o exemplo, de ser uma inspiração. Um sábio certa vez disse, “Uma mente equilibrada é necessária para equilibrar a mente desequilibrada dos outros.”

De forma mais ampla, uma sociedade pacífica encontrará uma forma de viver em paz com o seu entorno natural. Nós todos entendemos a necessidade de se proteger o meio ambiente, de parar de polui-lo. O que nos impede de agir com base nesse entendimento é o estoque de poluentes mentais, tais como a ignorância, a crueldade e a ganância. Ao remover tais poluentes promover-se-á a paz entre os seres humanos, assim como uma relação equilibrada e saudável entre a sociedade humana e o seu meio ambiente natural. Esta é a forma pela qual a religião pode garantir a proteção do meio ambiente.

Não-Violência: a Chave para uma Definição de Religião

É inevitável existirem diferenças entre religiões. No entanto, ao virem a esta Reunião de Cúpula para a paz no Mundo, os líderes de todas as maiores fés mostraram que querem trabalhar pela paz. Deixem, então, a paz ser o primeiro princípio da “religião universal”. Declaremos em conjunto que nos iremos abster de matar, que condenamos a violência. Eu também invoco os líderes políticos a se juntarem a nós nesta declaração, dada a importância estratégica de suas ações em prol da paz ou da guerra. Caso se juntem ou não a nós nessa declaração, deixem-nos pelo menos deixar claro aqui e agora: em vez de aceitarmos a violência e o extermínio, deixem-nos declarar que condenamos incondicionalmente tais atos, especialmente a violência perpetrada em nome da religião.

Certos líderes espirituais tiveram a sagacidade e a coragem de condenar a violência cometida em nome de sua própria fé. Pode haver visões filosóficas e teológicas diferentes sobre o ato de se buscar o perdão ou o arrependimento por ações passadas de violência e de extermínio; mas o próprio reconhecimento da violência praticada no passado implica no fato de ter sido equivocada e de que não será aceitável no futuro.

Sob a égide da ONU, deixem-nos tentar formular uma definição de religião e de espiritualidade com destaque para a não-violência, e com rejeição a qualquer apoio à violência e ao extermínio. Não haveria infortúnio maior para a humanidade do que se deixar de definir religião como sinônimo da paz. Esta reunião de cúpula poderia propor um conceito de “religião universal” ou de “espiritualidade não-sectária”, para endosso da ONU.

Estou seguro de que esta reunião de cúpula ajudará a focar a atenção do mundo no propósito verdadeiro da religião.

A religião não nos divide, ela ensina a paz e pureza de coração.

Eu me congratulo com os organizadores desta histórica reunião de cúpula pela sua visão e pelo seu esforço. E eu me congratulo com os líderes religiosos e espirituais que tiveram a maturidade para trabalhar pela reconciliação, dando esperança à humanidade que a religião e a espiritualidade nos levarão a um futuro pacífico.

Que todos os seres possam estar livres da aversão e ser felizes.

Que a paz e a harmonia possam prevalecer.

:: Sr. Goenka é um professor leigo de meditação Vipassana na tradição do falecido Sayagyi U Ba Khin da Birmânia (Mianmar). Discurso proferido na Reunião de Cúpula do Milênio sobre a Paz Mundial na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, em 2000 (Há 9 anos, mas tão atual).